O abandono que não se esquece
Por Rosemeire Zago
22/10/2009
Quantas vezes, ainda que na presença de alguém, temos a nítida
sensação que em qualquer momento podemos ser abandonados? Quantas
vezes, diante de um atraso, sentimos verdadeiro pânico? Quantas
vezes nos desesperamos diante da possibilidade da pessoa amada nos
deixar?
Quem viveu o abandono durante a infância pode sentir um medo
incontrolável de ser deixado, procurando evitar a todo custo ser
abandonado novamente. Quando falamos de abandono não é apenas em
casos em que uma criança é literalmente abandonada por seus pais, a
quem se espera ser amada e cuidada, mas aquelas que são abandonadas
através da negligência de suas necessidades básicas, da falta de
respeito por seus sentimentos, do controle excessivo, da manipulação
pela culpa, ainda que ocultos, durante a infância. Crianças
abandonadas, psicológica ou realmente, entram na vida adulta, com
uma noção profunda de que o mundo é um lugar perigoso e ameaçador,
não confiando em ninguém, porque na verdade não desenvolveu
mecanismos para confiar em si mesma.
O abandono está diretamente relacionado com situações de rejeições
registradas na infância e que pode se intensificar durante toda a
vida, principalmente quando se vivencia outras situações de rejeição
e/ou abandono. Cada vez que vivenciamos situações de perda é como se
estivéssemos revivendo a situação original de abandono, do qual
dificilmente se esquece. Podemos sim, reprimir, fugir desses
sentimentos, mas raramente conseguimos lidar sem sofrimento diante
de qualquer possibilidade de perda e/ou rejeição. Quando somos
rejeitados em nosso jeito de olhar, expressar, falar, comer, sentir,
existir, não obtendo reconhecimento de nosso valor, principalmente
quando somos crianças, é inevitável que se registre como abandono,
pois de alguma maneira, ainda que inconsciente, abandonamos a nós
mesmos para nos tornarmos quem esperam que sejamos. Sente-se
abandonado quem não se sentiu acima de tudo amado e isso pode ser
sentido antes mesmo de nascer, ainda no útero materno. Pais que
rejeitam seu filho durante a gestação pode deixar muitas seqüelas,
em nós, adultos. Toda criança fica aterrorizada diante da
perspectiva do abandono. Para a criança, o abandono por parte dos
pais é equivalente à morte, pois além de se sentir abandona, ela
mesma aprende a se abandonar.
Conforme percebemos, consciente ou inconscientemente, e ainda muito
pequenos, que a maneira com que agimos não agrada aos nossos pais,
vamos tentando nos adequar ou adaptar nosso jeito de ser e, aos
poucos, vamos nos distanciando de quem somos de verdade, agindo de
maneira a sermos aceitos. É quando começamos a desenvolver o que
chamamos de um falso self, a um estado de incomunicação consigo
mesmo, gerando uma sensação de vazio. O falso self é um mecanismo de
defesa, mas que dificulta o encontro com o self verdadeiro. É muito
comum que crianças que cresceram em famílias com algum
desequilíbrio, proveniente do alcoolismo, agressividade,
maus-tratos, ou qualquer outro tipo de abuso, tenha sofrido a
negação de seu verdadeiro eu. Crianças que sofreram em silêncio e
sem chorar, ou como alguns relatam: chorando por dentro, podem
aprender a reprimir seus sentimentos, pois uma criança só pode
demonstrar o que sente quando existe ali alguém que a possa aceitar
completamente, ouvindo, entendo e dando-lhe apoio, o que nesses
casos, raramente acontece. Pode acontecer dessa criança
desenvolver-se de modo a revelar apenas o que é esperado dela,
dificilmente suspeitando o quanto existe de si mesma por trás das
máscaras que teve que criar para sobreviver.
Alguns pais, inconscientemente, numa tentativa de encobrir sua falta
de amor - o que é muito comum, por mais assustador que seja para
alguns - declaram muitas vezes seu amor pelos filhos de forma
repetitiva e mecânica, como se precisassem provar para si mesmos seu
amor, onde as crianças sentem que suas palavras não condizem aos
seus verdadeiros sentimentos, podendo gerar uma busca desesperada
por esse amor, cuja busca pode se estender durante toda a vida.
Ficar só para essas pessoas pode ser uma defesa para evitar
novamente o abandono, gerando um conflito constante entre a
necessidade de ser cuidado e o medo de ser abandonado.
É muito comum a criança se sentir abandonada em famílias muito
numerosas, onde há muitos irmãos, e os pais não conseguem dar
atenção a todos. Ou quando os pais constantemente estão ausentes
pelos mais diferentes motivos, seja em função do trabalho excessivo,
viagens, doenças, internações constantes, ou até pela dificuldade em
cuidar de uma criança, não conseguindo fazer com que se sinta amada
nem desejada naquela família.
A sensação de ter valor é essencial à saúde mental. Essa certeza
deve ser obtida na infância. Por isso que a qualidade do tempo que
os pais dedicam aos seus filhos indica para elas o grau em que os
pais as valorizam. Por outro lado, a criança que é verdadeiramente
amada, sentindo-se valiosa quando criança, aprenderá a cuidar de si
mesma de todas as maneiras que forem necessárias, não se abandonando
quando adulta. Assim como crianças que passaram maior parte de seu
tempo com pessoas que eram pagas para cuidar delas, em colégio
interno, distante de seus pais, não recebendo amor verdadeiro, mesmo
tendo tudo que o dinheiro pode comprar, poderão ser adultos como
qualquer outra criança de tenha vindo de um lar caótico e
disfuncional, crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora do
cuidado de ninguém, podendo ter muita dificuldade em cuidar de si
mesma. Ou seja, a maneira com que nos cuidamos quando adultos,
muitas vezes reflete a maneira com que fomos cuidados quando
crianças.
Precisamos chegar a ponto de perdoar aqueles que de alguma forma nos
abandonaram ou que nos causaram uma dor profunda. Para alguns, essa
é uma tarefa fácil, mas temos que admitir que para outros, pode ser
praticamente impossível. Como perdoar um pai bruto, que o fazia
trabalhar desde muito pequeno ou pedir dinheiro, do qual depois
consumia em jogos e bebidas? Como perdoar um pai que abusou
sexualmente da filha, psicologicamente do filho? Como perdoar uma
mãe que trancava os filhos no armário ou no quarto ao lado enquanto
se encontrava com outro homem dentro da casa, ou quando deixava os
filhos sozinhos em casa dizendo que ia trabalhar, quando na verdade
ia se divertir? Como perdoar pais que sempre ocultaram a verdade,
insistindo na mentira? Como perdoar um irmão que abusou sexualmente
da irmã? Como perdoar uma mãe que demonstrava suas insatisfações
através de gritos com seus filhos? Como perdoar um pai que batia
constantemente na mãe na presença dos filhos? Como perdoar aqueles
que roubaram a infância e inocência de muitas crianças? Como perdoar
aqueles que o deixaram, o abandonaram? Não é possível perdoar se o
perdão for entendido como negação do fato, pois precisamos sentir a
dor que ficou reprimida em nossa alma. Perdoar não significa
aceitar, mas se permitir sentir e expressar toda a raiva e dor
reprimida e encontrar caminhos saudáveis que podem transformar esses
sentimentos em experiência e aprendizado.
Ao nos tornarmos mais conscientes de nossas feridas, entre elas as
geradas pelo abandono, podemos agir sobre aquilo que vivenciamos,
aprendendo a respeitar nossos sentimentos mais profundos, assumindo
a responsabilidade pelas mudanças que podemos nos permitir vivenciar
no momento presente. Não se trata de regresso ao lar, porque muitas
vezes esse lar nunca existiu. É a descoberta de um novo lar, o qual
cada um de nós pode construir, sem mais se abandonar.
Rosemeire Zago é psicóloga clínica, com abordagem junguiana e
especialização em Psicossomática. Desenvolve o autoconhecimento
através de técnicas de relaxamento, interpretação de sonhos,
importância das coincidências significativas, mensagens e sinais na
vida de cada um, promovendo também o reencontro com a criança
interior. Email: r.zago@uol.com.br