Uma breve visão sobre Anorexia e Bulimia
Por Luciane de Andrade Barreto
10/07/2008
Nós comemos apenas quando temos fome?
O comportamento alimentar está normalmente regulado por mecanismos
automáticos no sistema nervoso central (SNC). A sensação de fome tem
origem em estímulos metabólicos e em receptores situados na boca e
no tubo digestivo, induzindo a sensação de apetite até chegar ao ato
de se alimentar. A sensação de saciedade faz cessar os estímulos da
fome e se detém o processo. Embora o processo de alimentação possa
parecer fisiologicamente automático e elementar, não são apenas os
elementos neurobiológicos que regulam a conduta alimentar, mas
também as experiências prévias. Há mecanismos mais complexos e
relacionados com nossas experiências sociais e psicológicas, tais
como antecedentes de carência e privação ou sentimentos de
segurança, bem-estar e afeto que são experimentados através do
aleitamento materno. O ato de comer tem um aspecto eminentemente
social e cultural e normalmente as características dos alimentos
definem os diferentes grupos culturais, expressos nos chamados
“pratos típicos”. A comida ocupa um lugar de destaque nas reuniões
sociais, nas comemorações, nos rituais, em diversos eventos
representativos de um grupo ou de uma cultura. O ato de comer sempre
foi e sempre será um fenômeno de comunicação social e pode ser
melhor compreendido através dos tempos.
Da conquista do fogo até o império do fast-food, a alimentação
acompanhou as mudanças na humanidade, demonstrando as relações entre
a cultura e as maneiras de se alimentar. As condutas alimentares não
refletem somente a satisfação de uma necessidade fisiológica, mas
também demonstram a diversidade de culturas e a identidade de cada
povo, a partir de suas técnicas de produção, de suas estruturas e
representações sociais e religiosas. É uma construção lenta
influenciada pela visão de mundo e pelo conjunto de eventos,
tradições e costumes.
Durante séculos, os gregos e romanos banquetearam deitados, mas
durante a Idade Média os ocidentais passaram a comer sentados,
liberando as mãos para trinchar os alimentos, o que mais tarde
determinará o surgimento de talheres, pratos, mesas e cadeiras
altas. O uso de utensílios foi sendo incorporado ao cenário da
alimentação, inclusive por motivos de higiene e saúde, depois da
epidemia da peste negra.
A partir do século V, encontramos na literatura teológica as
descrições de jovens jejuadoras que renunciavam ao alimento como
meio de alcançar a elevação espiritual, interpretada naquele momento
como escolha divina. Por esta razão, entre os anos 1200 e 1500,
muitas mulheres que praticavam o jejum por um longo tempo eram
consideradas santas ou milagrosas, inclusive pela façanha de
sobreviverem ao prolongado estado de inanição. No entanto, durante o
período da Inquisição, o que antes era visto como devoção passa a
ser interpretado como ato demoníaco, heresia ou insanidade. A
renúncia a comer, anteriormente dignificada pela idéia de uma
comunicação com Deus, pode agora levar as jejuadoras à fogueira. No
século XIV, essas “santas anoréxicas” passam a ter um papel social
como representantes contra a dominação das estruturas patriarcais,
fazendo do jejum um meio de reação às imposições da época, tais como
os casamentos arranjados.
Podemos considerar essas mulheres as primeiras anoréxicas descritas
na literatura, ainda que as santas e beatas da Idade Média não
fossem motivadas por ideais de magreza, mas sim uma comunhão com
Deus ou uma oposição aos casamentos impostos.
Podemos encontrar na história e evolução das condutas alimentares a
compreensão para o aparecimento, por exemplo, de Transtornos
Alimentares como parte do processo da alimentação influenciada por
fatores como religião, cultura, status, moda, saúde, entre outros.
As transformações, portanto, não são apenas em relação ao que se
come, mas também ao como se come, ou seja, devemos estar atentos não
só ao alimento propriamente dito, mas também ao comportamento
alimentar. Através dessa reflexão, é possível compreender, por
exemplo, patologias do comportamento alimentar, como a Anorexia e a
Bulimia.
Atualmente, os Transtornos Alimentares são mais conhecidos através
de diversos casos veiculados na mídia, tais como jovens modelos que
morrem em decorrência de Anorexia ou personagem de novela que sofre
de Bulimia. São desvios do comportamento alimentar que podem levar
ao emagrecimento extremo ou à obesidade. Vários estudos indicam um
aumento na incidência de Anorexia e a Bulimia em razão do padrão de
beleza associado a um corpo cada vez mais magro em conexão com
fatores socioculturais. Alguns especialistas acreditam que os
Transtornos Alimentares são síndromes ligadas à cultura, ou seja,
apresentam um quadro de sinais e sintomas causados pela pressão
cultural em associação a fatores biológicos, psicológicos e
familiares, gerando uma excessiva preocupação com o corpo, um medo
anormal de engordar e uma ansiedade marcantemente acompanhada de
alterações físicas e distorção da imagem.
A Anorexia Nervosa é a doença psiquiátrica com maior taxa de
mortalidade, ocorrendo a morte por inanição ou suicídio. Trata-se de
um transtorno emocional que consiste numa significativa perda de
peso associado a um intenso temor à obesidade e à distorção da
imagem corporal, acometendo significativamente mais mulheres entre
14 e 18 anos. Os sintomas mais freqüentes são: medo intenso de
ganhar peso, mantendo-o abaixo do valor mínimo normal; pouca
ingestão de alimentos ou dietas severas; distorção significativa na
percepção da forma e/ou tamanho do corpo (sensação de estar gorda
quando se está magra); grande perda de peso em um curto período de
tempo; sentimento de culpa ou depreciação por ter comido;
hiperatividade e exercício físico excessivo; perda da menstruação;
excessiva sensibilidade ao frio, mudanças no estado de humor
(depressão, irritabilidade, ansiedade) e progressivo isolamento de
familiares e amigos. De acordo com o tipo de comportamento
alimentar, a Anorexia pode ser restritiva ou purgativa. No tipo
restritivo, os indivíduos obtêm a perda de peso através de dietas,
jejuns e/ou exercícios excessivos, por vezes limita a ingestão de
somente alguns alimentos e excluem aquilo que percebem como sendo
altamente calóricos. O tipo purgativo utiliza métodos adicionais
como a auto-indução de vômito e/ou uso indevido de laxantes ou
diuréticos.
As principais complicações são: desnutrição e desidratação, anemia,
redução da massa muscular, diminuição da motilidade gástrica,
osteoporose e diminuição da pressão arterial.
A Bulimia Nervosa acomete preferentemente a mulheres jovens e se
caracteriza por episódios repetidos de ingestão excessiva de
alimentos num curto espaço de tempo e às escondidas, seguido por um
sentimento de perda de controle que leva a pessoa a adotar condutas
inadequadas e perigosas para sua saúde, tais como: vômitos
provocados, uso de laxantes, diuréticos, inibidores de apetite,
enemas, realização de exercício excessivo e jejuns. Além desses
sintomas, verificamos também a distorção da imagem corporal;
manutenção do peso pode ser normal ou mesmo elevado; erosão do
esmalte dentário, podendo levar à perda dos dentes; mudanças no
estado emocional (depressão, tristeza, sentimentos de culpa e ódio
para si mesma).
As principais conseqüências da Bulimia são: desidratação; grande
perda de massa muscular, além de dores e cãimbras; cáries dentárias;
inflamação da garganta e do tecido que reveste o esôfago pelos
efeitos do vômito; inchaço na face e nas articulações; sangramento
intestinal; desequilíbrios metabólicos e hormonais; infertilidade;
perda de função renal e problemas gástricos, entre outras.
Vale ressaltar que a Bulimia pode emagrecer no início, mas depois a
tendência é engordar, pois o metabolismo, responsável pela queima de
calorias, torna-se cada vez mais lento e fica difícil a perda de
peso. Além disso, vomitar não elimina completamente as calorias
ingeridas, pois o corpo do bulímico parece aprender que a comida não
vai ficar muito tempo no estômago e cria mecanismos de absorção
rápida, enviando os alimentos direto para o intestino.
Pacientes com Bulimia podem ter muita semelhança com os que têm
Anorexia, mas a significativa diferença é a capacidade de controlar
seus impulsos, pois enquanto a anoréxica se orgulha do seu
auto-controle, pacientes com Bulimia administram a vergonha e o
descontrole alimentar através de atos compensatórios.
Para o tratamento dos Transtornos Alimentares é fundamental a
intervenção de equipe interdisciplinar agindo nos aspectos
biológicos, psicológicos e nutricionais. Familiares também devem
fazer parte da ação terapêutica, pois muitas vezes há diversos
conflitos nesse ambiente que contribuíram para a ocorrência do
transtorno.
Além da família, amigos, professores e outros profissionais devem
ficar atentos aos sinais da presença de anorexia ou bulimia, pois é
fundamental a imediata ajuda para que o quadro não se agrave e não
faça mais uma vítima.
Luciane de Andrade Barreto é Graduada em Psicologia pela
Universidade Paulista (2000) e em Educação Física pela Universidade
de Santo Amaro (1990). Atualmente é psicóloga e pesquisadora da
Universidade Federal de São Paulo, desenvolvendo diversos projetos
na área de Distúrbios do Sono e Atendimento Ambulatorial junto à
equipe interdisciplinar do Ambulatório Neuro-Sono. Atua em
Psicologia Clínica no setor público e privado, incluindo avaliações
e atendimento a atletas, esportistas e pacientes com transtornos
alimentares e psiquiátricos. Especialista em Psicoterapia
Ambulatorial (UNIFESP/2003), Psicologia do Esporte (2004) e
Distúrbios do Sono (UNIFESP/2005). Participação e apresentação de
trabalhos em diversos congressos nacionais e internacionais de
variadas áreas do conhecimento (Ciências do Esporte, Distúrbios do
Sono, Psicologia, entre outras).