A Ética do Cuidado em Saúde na Prática do Psicólogo Acupunturista
Por Susi Maria Salvador Chaves
22/03/2010
Universidade Federal Fluminense – UFF
Instituto de Saúde da Comunidade – CMS
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – PPGSC
Professores: Dimas Ribeiro e Valéria Ramos
Aluna: Susi Maria Salvador Chaves
O objetivo desse trabalho é abordar questões de bioética e
biopolítica envolvidas na prática do cuidado em saúde do psicólogo
acupunturista.
Num primeiro momento, como quem vai desbravando um território novo,
proponho um reconhecimento da área, ou seja, um referenciamento dos
conceitos a serem utilizados. Como nos fala Leonardo Boff, “ Todo
ponto de vista é a vista de um ponto”, mostraremos então “o ponto de
nossa vista” . Michael Foucault, considera como ética o modo do
indivíduo relacionar-se consigo mesmo (2005). Um processo de
reflexão sobre valores construídos socialmente e vivenciados sob as
diferentes formas de poder presentes nos fenômenos de dominação em
qualquer forma com que eles se apresentem: na política, na economia,
na sexualidade, na instituição. O autor denomina governabilidade “ao
conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir,
organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua
liberdade, podem ter uns em relação com os outros.”
É então á partir do conceito de governabilidade que vamos discutir a
ética, sendo esta a forma como o indivíduo manifesta sua liberdade
em relação a si mesmo e na relação com o outro. “...a noção de
governabilidade permite, acredito, fazer valer a liberdade do
sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a
própria matéria da ética.” (p.286)
A Bioética vem associar tais reflexões ao fenômeno da vida
biológica, traz um juízo crítico sobre valores e condições para a
vida humana. Como a liberdade do profissional de saúde se manifesta
no trabalho vivo em ato ao governar a si mesmo e ao interagir com o
outro no momento de encontro com o usuário nos serviços de saúde.
Em nosso caso específico vamos percorrer o caminho da Acupuntura e
como o profissional de saúde, aluno de Pós Graduação em Acupuntura,
vai se deparando com essas questões no dia a dia de um ambulatório
de atendimento e como o professor supervisor pode atuar como
propulsor nessa formação.
Já Biopolítica, pode ser definida como a prática de relacionamentos
entre os poderes que envolvem o campo da vida biológica humana.
Segundo Foucault, as relações de poder estão presentes em todas as
relações humanas. A forma como o poder se manifesta foi se
diferenciando histórica e socialmente de maneira visível, sob forma
de leis, ou de maneira invisível, sob forma de coersão. Segundo
Baremblit (2002), o poder relacional é aquela forma de poder que se
mantém na dinâmica das relações, instituindo e sendo instituinte de
diferentes modos de agir.
Por instituído podemos entender como o que está posto, estabelecido.
Instituinte é tudo aquilo que escapa, que foge ao pré-estabelecido.
Não há,pois, nenhum juízo crítico de valor a algumas das formas,
sejam instituintes ou instituídos, e também não há uma relação de
permanência entre esses eles. O que hoje vem se mostrando como
instituinte poderá estar instituído em outro momento, ou em outro
lugar.
No recorte proposto aqui, a acupuntura como prática de cuidado em
saúde no Ocidente esteve como instituinte e hoje está instituída
pela Organização Mundial de Saúde como prática complementar a ser
praticada pelos profissionais de saúde de diferentes áreas de
formação. Há porém, um outro movimento de poder instituinte que vem
buscando instituir a prática de acupuntura apenas para profissionais
médicos. Esse porém, não será o foco proposto nesse momento.
Pretendemos discutir a forma como os diferentes poderes se
manifestam nas relações entre os profissionais e os usuários no
ambulatório de atendimento em acupuntura. Seja sob forma de poder de
soberania, aquele em que o indivíduo está submisso ao soberano e
cabe a ele a decisão do fazer viver ou deixar morrer , ou seja sob
forma do poder disciplinar, em que o corpo que atende à demanda
socialmente criada tem um valor, ou ainda, sob forma de biopoder,
controlando reprodução, fecundidade, longevidade. (Foucault,2005).
Como referenciais de análise do trabalho em saúde, os termos
Bioética e Biopolítica se mostraram como conceitos intercessores, ou
seja, segundo Deleuze, produziram um efeito de desestabilização, de
perturbação pelo que ocorre “entre” (pacientes, profissionais,
alunos, professores). Atuando como professora supervisora no
ambulatório de acupuntura da Pestalozzi, ao refletir sobre tais
conceitos percebi uma certa inquietude que gerava insatisfação e ao
mesmo tempo motivação para a continuidade. Uma estranheza precisava
ser aprendida. Aceitar a incompletude da “razão” , perceber e
ensinar que política não é sinônimo de coersão e que ética é mais
reflexão do que normatização.
A acupuntura é uma prática milenar que se constituiu sobre um outro
tipo de racionalidade, o pensamento oriental, e quando ela se
ocidentaliza, enfrenta riscos e embates a todo instante.
Profissionais em saúde formando-se acupunturistas. Profissionais de
diferentes áreas mas que foram formados por uma mesma lógica
biomédica hegemônica.
Uma lógica que prioriza o imediatismo e o poder soberano. Que tipo
de juízo crítico estes profissionais ocidentais vão formando para
atuar em acupuntura? Como utilizar desta ferramenta em saúde que
privilegia a prevenção, por exemplo, ao tratar pacientes com
patologias crônicas ? Procedimentos para melhorar o processo
digestivo de pacientes que resistem a mudar hábitos alimentares.
Estaremos “cuidando” para que continue seu mau hábito ?
Procedimentos para melhorar a libido em mulheres cujo marido está
impotente. Será incentivo para aumentar a insatisfação?
Potencializar a sexualidade em um paciente compulsivo por sexo ? São
algumas das questões que surgem rotineiramente no ambulatório de
acupuntura e precisam fazer parte das discussões de supervisão, além
do ensinamento técnico da prática de acupuntura, é necessário pensar
na ética desse profissional que estamos formando.
A prática do cuidado em saúde é influenciada pelas normas
estabelecidas dentro de limites bem restritos. Quem decide o modo de
fazer o cuidado é o próprio trabalhador em ato, no seu processo de
trabalho. É no encontro que a relação se estabelece e se delineia,
partindo como referenciais a ética, a liberdade de governar a si
mesmo e a relação com o outro. É um cenário amplo e de uma dinâmica
relacional onde o controle pelo que está instituído fica á margem de
movimentos que vão se instituindo a todo instante. O trabalho vivo
em ato é a expressão máxima da liberdade do trabalhador, podendo
esse ser capturado pelas formas hegemônicas de agir, sendo
reprodutor de um modelo, ou escapando a essas formas, sendo inovador
e gerenciador de sua própria forma de cuidar.
No cuidado em saúde através da acupuntura tal processo não se
diferencia. O acupunturista, ao deparar-se com o corpo do paciente e
sua dor, tem a possibilidade de atuar no sentido de mediar a
interlocução do sujeito com o seu corpo, e reconstruir com ele,
através do sofrimento, sua capacidade de manter, intervir e
transformar, de forma autônoma e socialmente compartilhada, a
própria vida e o meio em que vive. Ou então, simplesmente, oferecer
a ele a “cura” de seu mal, exercendo sobre ele o poder que lhe é
outorgado pelo próprio paciente.
Pensamos porém que a acupuntura é uma ferramenta de cuidado em saúde
que traz a possibilidade de recuperar no sujeito o simbólico de sua
dor, transpondo a maneira narcísica com a qual a subjetividade
moderna se inscreve. O campo da saúde hoje é atravessado por forças
que seduzem e capturam os sujeitos, que se “asujeitam” por meio de
seu próprio corpo ( procedimentos que utilizam a tecnologia para
melhorar o desempenho do corpo biológico, ou até mesmo para
substituir esse corpo) ou da ação, atitudes impulsivas que são os
registros por excelência de seu mal estar (manifestações
comportamentais que vêm emergindo de maneira alarmante na
sociedade).
A Filosofia chinesa parte do pressuposto de que corpo/mente/emoção
são manifestações de uma mesma substância em diferentes graus de
materialidade. Não há o dualismo psicofísico que há no pensamento
ocidental. Esta substância é o Qi, energia vital, o que se poderia
comparar com o conceito de libido em Jung, “energia psíquica
presente em tudo o que tende a”. A acupuntura atua no Qi através do
corpo, pretendendo-se que seja avaliado em função da organização
estabelecida entre os elementos que o compõe (Água, Madeira,
Fogo,Terra,Metal). A saúde está no equilíbrio do movimento de Qi
entre esses elementos, sendo manifestada pela ausência de queixas,
sem diferenciar caso sejam de ordem corporal ou emocional. O corpo é
tido como um microcosmo, regido pelas mesmas leis do macrocosmo.
Cada um dos pontos de acupuntura foi concebido em sua função e
efeito abrangendo os três níveis do indivíduo. Os meridianos,
caminhos por onde circula o Qi, percorrem todo o corpo e foram
estabelecidos como metáforas do relevo da China, ou de acordo com a
função equivalente na história social deste país. Existe por exemplo
o ponto do meridiano da Vesícula Biliar,o VB 39, que em chinês (
Xuanzhong) significa Sino Suspenso. Nos tempos antigos crianças
usavam uma faixa nesse local com um sino pendurado e uma das funções
do ponto é revitalização, nutrição da medula, que na acupuntura é o
substrato para a formação do cérebro. Temos que lembrar que o código
de linguagem chinês é um registro simbólico e não de signos como a
linguagem ocidental. Por exemplo, a palavra Terra é escrita desta
forma, composto por duas linhas horizontais e uma vertical. A linha
horizontal de cima representa o solo superficial e a segunda linha o
subsolo. A linha vertical representa todas as coisas que são
produzidas pela terra. Assim o caractere representa as duas
qualidades principais da Terra: nutrição e estabilidade. Na
acupuntura, Estômago e Baço-Pâncreas compõem esse elemento e suas
patologias estão relacionadas ao sistema digestivo e também a
digerir ,transformar e assimilar emoções e pensamento, como nos
processos mentais de aprendizagem ou preocupação.
Temos então um modelo de cuidado em saúde que se estrutura num corpo
simbólico e que interfere neste corpo através de estímulos em
determinados pontos selecionados para que este restabeleça o
equilíbrio e deixe de manifestar o sintoma – físico ou psíquico.
Como supervisora de alunos profissionais em saúde num ambulatório
escola em acupuntura, atendemos um número que gira em torno de 30
pacientes por dia que realizam seus tratamentos de lombalgia,
cervicalgia, gonalgia, e muitas outras algias de corpo e também
pacientes que chegam com queixas psíquicas como estresse, insônia,
tensão pré-menstrual, depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar,
fibromialgia. Particularmente desenvolvo uma pesquisa de acupuntura
no tratamento de crianças hiperativas , com distúrbios de
aprendizagem, psicóticas e com comprometimentos neurológicos.
O indivíduo quando chega até nós, traz em si uma demanda de saúde,
como se nós,profissionais, fôssemos dotados de um poder (o que antes
era dado a um soberano e neste momento é repassado para nós) capaz
de solucionar a dor que ele não suporta mas que julga-se incapaz de
resolver.
Acontece que a acupuntura geralmente não é o primeiro recurso a ser
procurado aqui em nossa sociedade. Muitos pacientes vêm porque já
tentaram de tudo....e então os médicos recomendam a acupuntura;
outros chegam para diminuir a quantidade de medicamentos para dor ou
para o sono, já que a acupuntura é reconhecidamente eficaz no
tratamento da dor e da insônia ou do estresse. Muitos têm medo de
agulha, e há ainda alguns que fazem tratamento há 1 ou 2 anos porque
se sentem muito bem mas suas dores voltam quando param a aplicação.
Porém há também no ambulatório alguns diferentes casos, que escapam
ao padrão de algias clássico, como: crianças tratando enurese;
mulheres tratando sintomas de tensão pré-menstrual; mulheres
tratando infertilidade, homens tratando impotência; tabagismo;
obesidade .
Ocorrem casos em que pacientes buscam o tratamento apenas como
prevenção de doenças, ou para evitar aumento do grau de miopia,
ajudar no controle hormonal durante a menopausa, diminuir os
tremores do Parkinson, melhorar a memória nos idosos e mesmo a
performance nos estudos. Observamos também que alguns pacientes
chegam por queixas bem definidas em algias no corpo, e, quando estas
são resolvidas, passam a ter queixas emocionais, como ansiedade ,
irritabilidade ou depressão.
Ora, sendo a acupuntura reconhecida pelo Conselho Federal de
Psicologia desde maio de 2002, podemos refletir um pouco sobre a
concepção de corpo a que estamos nos referindo e a que tipo de
cuidado em saúde o Psicólogo Acupunturista se propõe.
A dicotomia corpo-alma sempre esteve presente no pensamento dos
filósofos ocidentais. A essa diferença e separação em partes
material(corpo) e espiritual(alma) é conhecida como dualismo
psicofísico, ou seja, a dupla realidade da consciência separada do
corpo.
Já no pensamento grego, no século V a.C., com Platão, essa dicotomia
se fazia presente. Para ele, a alma antes de se encarnar, teria
vivido no mundo das idéias, onde tudo conheceu de maneira intuitiva,
sem precisar usar os sentidos. A alma se une ao corpo por
necessidade natural ou expiação de culpa, tornando-se então,
prisioneiro dele. A alma humana passa a se compor de duas partes:
uma superior – a alma intelectiva – e outra inferior – a alma do
corpo - .essa alma inferior acha-se ainda dividida em duas: a
irascível, impulsiva, localizada no peito e a concupiscível,
centrada no ventre e voltada para os desejos de bens materiais e
apetite sexual.
Para Platão o conhecimento verdadeiro está na alma superior e todo o
drama humano consiste na tentativa de domínio da alma superior sobre
a inferior. Se a alma superior não conseguir controlar as paixões e
os desejos – o que é sensível, escraviza, conduz à opinião e
perturba o conhecimento verdadeiro – o homem torna-se incapaz de
comportamento humano adequado. “Corpo são em mente sã.” , célebre
frase de Platão, referindo-se que o corpo saudável, de posse da
saúde perfeita, permite que a alma se desprenda dos sentidos para
melhor se concentrar na contemplação das idéias. Dessa maneira, a
fraqueza física impede a vida superior de espírito. Não é por acaso
que a Grécia é o berço das olimpíadas, origem da valorização dos
esportes, ginástica e exercícios físicos, prática porém justificada
para manter a superioridade do espírito sobre o corpo.
Esta prática de exercícios físicos, que no início era tida apenas
para o treinamento de atletas, adquire o sentido de disciplina
espiritual de auto-controle. Com o advento do cristianismo, passa a
significar o controle dos desejos pela renúncia aos prazeres do
corpo, o que podia ser feito através de jejum, abstinência e
flagelações, por exemplo com a prática de chicotear o próprio corpo.
Tais comportamentos se baseiam na interpretação dos pensamentos
racionais do pensamento de Platão, partindo do princípio de que o
corpo é sinal de pecado e degradação – ascetismo. Ascede em grego
significa “exercício” – o que de início era apenas exercício passou
a ter cunho de poder pelo auto-controle.
Santo Agostinho ( 354 – 430 d.C.) busca inspiração no neoplatonismo,
encaminhando-se para a conversão ao cristianismo e posteriormente
elabora a grande síntese teológica cuja influência será decisiva na
transição do final da Antiguidade para a Alta Idade Média.
Interpreta corpo-alma como uma unidade. O corpo é a dimensão terrena
e mortal da alma imortal. A alma pode governar o corpo através do
livre-arbítrio e auxílio da graça divina. Porém, exatamente por ser
livre, o homem pode eleger o mal e pecar. Pecado é a transgressão
intencional de um mandamento divino – dizer, fazer ou desejar algo
que seja contrário à lei eterna. Mantém assim o drama humano como o
esforço contínuo contra o desejo intenso de bens ou gozos materiais,
inclusive o apetite sexual.
Temos então que na Idade Média o corpo era considerado inferior mas
era também considerado criação divina, mantendo um certo grau de
sacralidade. No Renascimento a noção de corpo começou a mudar. A
Igreja impediu essa mudança enquanto pôde. Por exemplo, a dissecação
de cadáveres era considerado sacrilégio por tentar desvendar o que
Deus teria ocultado de nosso olhar. Houve porém a quem o controle da
igreja não pôde impedir de avançar. Podemos citar Leonardo Da Vinci
(Séc. XV) e Versalius (Séc. XVI) que ousaram desafiar a tradição e
contribuíram para novas concepções de anatomia.
Esse outro lado “profano” pode ser compreendido na perspectiva da
revolução científica promovida por Bacon,Descartes e Galileu. O
corpo passa a ser objeto da ciência e dele é retirado o componente
religioso, passando a considerar apenas sua natureza física e
biológica.
A filosofia cartesiana traz uma nova abordagem a respeito do corpo,
mantendo e explorando ainda o dualismo psicofísico: o ser humano é
constituído por duas substâncias distintas. A substância pensante,
de natureza espiritual, o pensamento e a substância material, o
corpo.
De certa forma o dualismo platônico se faz presente. A diferença
está em se tratar o corpo como objeto, associada à idéia mecanicista
do ser-humano máquina.
“Deus fabricou nosso corpo como máquina e quis que ele funcionasse
como instrumento universal, operando sempre da mesma maneira,
seguindo suas próprias leis.” Descartes
Com o desenvolvimento das ciências, o modelo mecânico vai se
tornando cada vez mais elaborado, porém mantém-se o corpo associado
à mensão material, corpórea e sujeito ás forças determinantes da
natureza. O indivíduo deixa de ser responsável pelo próprio destino.
São pressupostos materialistas que tornam-se cada vez mais
relevantes, representando certo impecilho para o desenvolvimento das
ciências humanas no final do século XIX, em razão da dificuldade em
restabelecer as ligações entre as duas realidades que compõem o ser
humano.
Somente no Séc. XX surgiram correntes filosóficas que tentaram
superar a dicotomia corpo-consciência para restabelecer a unidade
humana.
Baruch Espinosa (1632-1677) foi uma exceção. Filósofo judeu holandês
escreveu várias obras mal compreendidas e quase nunca lidas tanto no
seu século como nos subseqüentes. Considerado por muitos um filósofo
determinista no momento em que negaria a liberdade humana, ao
contrário, ele faz uma crítica a toda forma de poder, tanto político
como religioso. Busca esclarecer os obstáculos à vida em liberdade,
querendo descobrir o que leva o homem à servidão e à obediência, o
que permite e o que impede o exercício da liberdade.
Traz como inovador para seu tempo a teoria do paralelismo. A relação
existente entre corpo-espírito não é de causalidade, mas de
expressão e simples correspondência: o que se passa em um deles se
exprime no outro. Nem o espírito é superior ao corpo, nem o corpo
determina o espírito.Alma e corpo exprimem, no seu modo, a mesma
coisa. Desse modo, tanto alma como corpo podem ser ativos ou
passivos. Quando ativos, o somos de corpo e alma, sendo autônomos e
senhores de nossa ação. A virtude da alma, sua força e poder,
consiste na atividade de pensar, de conhecer. Quando está então
voltada para si mesma, capaz de produzir idéias, passa a uma
perfeição maior, percebe-se ativa e é afetada pela alegria. Quando
diante de uma situação a alma não consegue entender, percebe-se
impotente, causando o sentimento de diminuição e tristeza(é a alma
passiva).
É da natureza do corpo afetar outros corpos e ser afetado por eles.
Essa relação de afecção determina duas posições diferentes: o corpo
que nos afeta pode se “compor” com o nosso, a sua
potência(capacidade de agir) se adiciona à nossa, provoca um aumento
da nossa potência e passamos a uma perfeição maior, tendo como
resultado a alegria e um corpo ativo. Mas se ao contrário, há um
encontro entre dois corpos que não se “compõem”, ocorre uma
diminuição de nossa potência, gerando tristeza e um corpo passivo.
No sentido etmológico, a palavra paixão significa “padecer”,
“sofrer” e Espinosa denomina tanto a alegria como a tristeza de
paixões. Nos dois casos, não somos nós que agimos, a ação tem uma
causa exterior e nós permanecemos passivos. O que as difere é que
paixão alegre nos potencializa, ou seja, nos aproxima do lugar em
que nos tornamos senhores da ação. Enquanto que a paixão triste nos
afasta cada vez mais da nossa potência de agir, como geradora de
ódio, aversão, temor, desespero, indignação, inveja, crueldade,
ressentimento.
Fica claro então que o dilema do homem é evitar a paixão triste e
propiciar a paixão alegre. Mas para Espinosa, diferentemente de
outros filósofos que estabelecem hierarquias e pretendem subjulgar
as paixões à razão ou vice-versa, liberdade é autodeterminação, é
autonomia. Somos autônomos quando o que aconteceu em nós é explicado
pela nossa própria natureza e não por causas externas. Esta
conquista se faz quando conseguimos estar mais ativos, sobrepondo as
paixões alegres sobre as tristes.
A fenomenologia vem com o conceito de intencionalidade tentar
superar as dicotomias corpo-espírito, consciência-objeto e
indivíduo-mundo. O corpo é visto como o primeiro momento da
experiência humana. Ao estabelecer contato com outra pessoa, o corpo
se revele como “eu sou”. O movimento corporal não é mecânico. O
gesto diz algo e revela o sujeito. É um corpo humano que revela uma
facticidade no sentido de “estar lá com as coisas” mas é também
acesso às coisas e a si mesmo, na possibilidade de transcendência.
Pode-se argumentar que a dor e a doença são então manifestações de
pura corporeidade. Porém, a facticidade nunca se separa da
transcendência, que mostra o sentido que o indivíduo dá à sua doença
ou no uso que o indivíduo faz dela.
A doença traz outros ocultos sentidos. Pode ser útil para despertar
a atenção do outro, a sua complacência, o abrandamento de sua
severidade. Pode também representar a forma sádica pela qual
sacrificamos os que nos rodeiam, ou ainda a forma de nos esquivarmos
de certas obrigações. Podem até mesmo tornar-se condição de domínio
de si, como no caso de Demóstenes, quando a gagueira o incita a ser
um grande orador.
Freud, no Século XX desenvolveu sua teoria do funcionamento da mente
e demonstrou como o corpo pode ser uma forma de somatizar os
conflitos internos, tais como paralisias e alucinações na Histeria.
A filósofa norte-americana Susan Sontag em seu livro A Doença como
Metáfora, analisa por exemplo a doença clássica do Séc.XIX, a
tuberculose a mais recentemente, o câncer.
“Qualquer doença encarada como um mistério e temida de modo muito
agudo será tida como moralmente, se não literalmente, contagiosa.”
As pessoas acometidas pela tuberculose em sua época, ou por câncer
posteriormente, eram afastadas de seus familiares e objeto de
descontaminação por parte das pessoas da casa, como se fossem
doenças transmissíveis. O mesmo aconteceu recentemente com a AIDS,
tendendo a estigmatizar as vítimas. “Mas para afastar as
metáforas,não basta abster-se delas.É necessário desmascará-las,
criticá-las, atacá-las, desgastá-las.
Há também o corpo usado para debilitar o espírito e curvá-lo ao
poder superior. A história registrou diversos exemplos de suplícios
sofridos pelos que ousaram desafiar as regras estabelecidas como
tabus pelo poder hierárquico. Franz Kafka, no conto A Colônia Penal,
ilustra o que Michael Foucault descreve como poder disciplinar.
Kafka relata o prisioneiro que tem sua pele marcada com uma máquina
tipo estilete, com a lei que foi por ele transgredida. “Respeite
seus superiores”, de modo que ele mesmo não a veja, bastando
conhecê-la na própria carne e decifrá-la com suas feridas, sem saber
nem mesmo ter sido condenado, sem direito de defesa.
Em sua análise, Foucault(1926-1984) faz um levantamento de
documentos dos séc. XVII e XVIII descrevendo de que forma o poder
vem disciplinando os corpos.” O corpo só se torna força útil se é ao
mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”. Há um tipo de poder
disciplinar diferente daquele que antes existia e era exibido nos
conventos e nas oficinas. Trata-se de um poder que volta-se para
fins utilitários, regido pelo modelo capitalista de produção. É
também um poder não dito em linhas, mas inscrito nas entrelinhas da
organização e do controle do tempo e do espaço. Um poder que não
está somente no aparelho do Estado, mas em diferentes pontos do
próprio seio da sociedade como nos colégios,hospitais, asilos,
fábricas, quartéis e prisões.
Com esta tão longa tradição de desvalorização do corpo e das
paixões, de seu controle e normatização, temos à partir da década de
1960 um esforço de libertação das amarras do corpo. Mudanças que não
seguem o viés do amadurecimento do sujeito, e nem ao menos a
recuperação da autonomia em equilíbrio no cuidar de si.
No final do Séc. XX vemos surgir o fenômeno da corpolatria, do
endeusamento do corpo. Observa-se o cultivo de formas do corpo de
maneira impositiva e tirana, sob regime de controle alimentar,
exercícios físicos, modeladores, plásticas, estratégias essas que
não levam à satisfação e seguem um modelo de consumo em gerações que
têm medo de envelhecer e morrer.
Nesse processo, cresce um tipo de individualismo narcisista em que
cada um vive para si próprio.Para o filósofo Gilles Lipovetsky:
“O narcisismo realiza uma missão de normalização do corpo: o
interesse febril que temos pelo corpo não é de modo nenhum
espontâneo e livre, obedece a imperativos sociais como a linha, a
forma, o orgasmo, etc. O narcisismo joga e ganha todos os
tabuleiros, funcionando ao mesmo tempo como operador de
desestandartização e como operador de estandartização, sem que esta
última se apresente jamais como tal, mas como sujeição às exigências
mínimas da personalização: a normalização pós moderna apresenta-se
sempre como único meio de o indivíduo ser realmente ele
próprio,jovem esbelto,dinâmico.”
A Bioética hoje faz um convite para pensarmos a mutação que concerne
ao futuro humano. O modo como a aceleração do capitalismo engatou na
aceleração tecnocientífica.
A geração de hoje está tendo que fazer escolhas éticas e opções
tecnológicas decisivas. São questões relativas ao transumano, ou
mesmo ao pós-humano. É a tecnologia não mais á serviço do homem, mas
gerando um novo conceito do que é ser humano.
Esse modo de gerir subjetividades coletivas influencia fortemente o
campo da saúde. O mercado altamente lucrativo do medicamento surge
como principal força econômica na saúde, ao lado da tecnologia de
diagnóstico. Podemos metaforizar como uma “guerra terapêutica”, com
fabulosas campanhas de marketing, formulando campanhas que modulam
hábitos dos profissionais e dos usuários, buscando a concepção “fast
food” no consumo em saúde.
A ética do psicólogo acupunturista gira em torno dessas questões,
quando o paciente chega queixando-se de sua dor. Precisamos refletir
sobre a diferença entre dor e sofrimento. Enquanto queixa-se de dor,
o discurso segue a lógica biologicista explicativa e capturante do
sujeito, que se asujeita à sua dor, ao invés de formar-se enquanto
sujeito que opera sobre seu sofrimento. A passividade domina o
indivíduo quando algo em si dói, esperando que algum fator externo
ou alguém “cure” a sua dor, taga-lhe a solução desejada. É a captura
do sujeito pelo sistema.
O sofrimento está relacionado ao simbólico, em tornar o sujeito
ativo no processo de cura, refletindo e mudando hábitos de vida que
podem estar sendo agravantes em seu adoecer. É a busca da autonomia
do sujeito na prática do cuidado em saúde. Sem representação, sem
transcender, sem simbolizar, a transformação ou a elaboração deixa
de existir, dando lugar para o imediatismo do alívio da dor. A
sociedade se prepara cada vez menos para o enfrentamento de sua dor,
sem a qual não há estruturação de um sujeito autônomo.
Na acupuntura esta captura aparece no cotidiano do atendimento
ambulatorial. Sendo esta técnica rica na diversidade de combinações
para o tratamento, facilmente o aluno-profissional vê-se angustiado
para encontrar a solução no alívio dos sintomas apresentados.
A reflexão sobre a ética do profissional de acupuntura no referido
ambulatório se faz no dia a dia, no acompanhamento de cada aluno no
aprendizado do atendimento aos pacientes que ali chegam. É na ação
micropolítica que percebemos o fator ética nas relações que se
estabelecem entre os alunos-professores-usuários em acupuntura.
Cada aluno-profissional, em sua ação cotidiana inclui sua produção
subjetiva em ato, produz o cuidado em saúde através da acupuntura
além de produzir a si mesmo como sujeito no mundo.
Ao entrar em contato com todo o aparato teórico que fundamenta a
Medicina Tradicional Chinesa o conflito interno está subliminar ao
seu comportamento. Porém, ao entrar para o campo de estágio, ao
“laboratório de aprendizagem prática”, o conflito emerge para a
superfície de maneira espantosa.
Com fundamentação teórica de Deleuze e Guatarri (1972,1995), é a
demonstração viva da subjetividade atuando na construção do socius.
O cenário do ambulatório de acupuntura torna-se fomento de
aprendizado ético na formação do acupunturista. A produção das
subjetividades que atuam nesse cenário que, no ato cuidador vão se
construindo, é impulsionada pelo desejo, vai se instituindo pelo que
pode ser chamado de “fatores de afetivação”, isto é, acontecimentos
que atuam como dispositivos sociais.
Em Análise Institucional, o Trabalho Vivo em Ato vai instituindo, em
um processo simultâneo de formação (cuidado-cuidador) a
subjetividade do profissional-aluno. Esta subjetividade construída
social e historicamente, alicerçada em encontros, vivências,
acontecimentos, relações. O professor-supervisor age ali como um
agenciador de desejos, capaz de operar na formação de cuidadores
através da dinâmica experiência relacional.
O aluno-profissional de saúde chega com o modelo biomédico já
conhecido e algumas vezes já instituído em sua prática de
atendimento. Quando procura a formação em acupuntura defronta-se com
um paradigma diferenciado, um modo de pensar e agir em saúde
centrado no paciente, baseado na integração corpo-mente-espírito.
Enquanto este novo modo de pensar está se dando na sala de aula o
embate encontra-se ainda muito no campo das idéias. Quando o cenário
passa a ser o trabalho Vivo em Ato, o conflito gera um grande
desconforto. É a exigência de se “desconstruir”, de se “deixar
esvaziar” para reaprender um novo modo de pensar a saúde.
A ética do psicólogo acupunturista compartilha desse momento. A
psicologia, saber de berço questionador e reflexivo, inserida no
campo de procedimentos e patologias do tipo hérnia de
disco,distensão muscular,hemiplegia. Aprendendo “pontos”
anti-inflamatórios, pontos que fazem o intestino funcionar, pontos
que trazem a performance da ereção e ejaculação.
Sabemos que esta ética precisa ser construída, tendo como centro o
campo relacional do trabalho vivo em ato. É um processo que
necessita de espaços de fala, de escuta, de olhares e reflexões
significativas entre alunos-profissionais, supervisores-formadores e
usuários. É um agir relacional de desejos, na dinâmica sistêmica
entre os diferentes atores da cena em saúde. O ser humano é um ser
social, um ser relacional. Nessas relações o poder está presente de
diferentes formas, num jogo de forças que vão delineando as formas
de agir no mundo.É a ética que vai circunscrever até onde, ou a
maneira do agir em cada um dos atores. Existem diferentes éticas,
caberá a cada um de nós escolher qual delas seguir. Como enxergar a
invisibilidade que se expõe na algia dita. Como incitar a percepção
do sofrimento que há por detrás da dor relatada. É o exercício do
olhar não somente para os corpos que ocupam papéis tão bem
instituídos, mas o que está entre os corpos, o que, na linguagem da
própria Medicina Tradicional Chinesa seriam os “sinais” e não os
“sintomas” (sinais são os indicadores do acupunturista e sintomas as
queixas trazidas pelo paciente).
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