A Questão Ética do Analista
(Um Estudo Crítico do Caso Dora)
Por Márcia Vasconcellos de Lima e Silva
1999
"A referência ao desejo da histérica não é uma referência
psicológica. Ela nos põe, eu diria, na pista de um certo pecado
original da análise. É preciso mesmo que haja um. O verdadeiro é
talvez apenas uma coisa, é o desejo do próprio Freud, isto é, o fato
de que algo, em Freud, não foi jamais analisado".
(Jacques Lacan - Seminário XI)
1- Introdução:
O presente trabalho é produto de uma tentativa de articulação entre
a ética de Aristóteles e a ética da Psicanálise, tendo no seu bojo
considerações críticas a respeito do caso Dora e o desejo do
analista.
Nossa intenção aqui foi a de estabelecer uma ponte entre os
conceitos teóricos - através de citações, exemplos e as nossas
próprias considerações acerca dos assuntos de modo geral - e a
práxis psicanalítica.
Para tanto, consideramos que a divisão do trabalho em capítulos -
longe de separar os assuntos uns dos outros, pois que os mesmos
seguem um encadeamento próprio e isso seria, portanto, tarefa
impossível - visa facilitar a leitura em termos didáticos.
Assim, nesta introdução, pretendemos apresentar o trabalho a fim de
fornecer uma visão geral acerca do mesmo. O item 1.1, objetiva
conceituar o termo ética através dos tempos. No capítulo 2, tentamos
contrapor as éticas aristotélica e psicanalítica. O capítulo 3
destina-se a fazer uma análise crítica do caso Dora. Já no capítulo
4, de posse dos conhecimentos adquiridos nos capítulos 2 e 3,
procuramos correlacionar a questão ética e o desejo do analista.
Finalmente, no capítulo 5, colocamos as nossas conclusões, reflexões
e posicionamento mais pessoais - digo mais, pois considero
impossível dissociar o autor de sua obra e, desta forma, durante
todo esse trabalho, estamos expondo nossas idéias e pontos de vista,
ora concordando, ora divergindo, ora questionando os autores citados
- nunca, porém, desconsiderando seu valor.
Nossa sincera esperança é a de que esse trabalho venha mobilizar de
alguma forma quem vier a lê-lo, pois embora trate-se de um trabalho
para fins acadêmicos, nosso objetivo aqui perpassa essas meras
formalidades. Esperamos que o que aqui está escrito possa contribuir
- seja lá como for - àqueles que a esse trabalho tenham acesso.
Assim como realizá-lo nos foi de grande valia, além de ter sido
extremamente prazeiroso. A Ética, particularmente, sempre foi um
assunto que nos interessou e chamou especial atenção.
OBS: todas as passagens que grifamos, foram por nós consideradas
importantes, interessantes ou mesmo instigantes para associações ou
comentários. Infelizmente, porém, não nos foi possível enfatizá-las
em particular. Contudo, esperamos que elas possam suscitar no leitor
algum tipo de articulação com as questões apresentadas.
1.1- Conceito de Ética:
Uma vez que se pretenda estudar a questão ética do analista neste
trabalho, penso ser de fundamental importância definir o conceito de
ética, fazendo uma breve diferenciação com o termo moral - uma vez
que ambos os termos se relacionam e tendem a ser confundidos um com
o outro.
Etimologicamente, o termo moral vem do latim mos ou mores, que
significa costume ou costumes, " (...) no sentido de conjunto de
normas ou regras adquiridas por hábito ". Já ética vem do grego
ethos que significa modo de ser ou caráter, " (...) enquanto forma
de vida também adquirida ou conquistada pelo homem ". (Vásquez,
1969: 14). Originariamente, portanto, ambos os termos não
correspondem a uma disposição natural, mas sim a algo adquirido ou
conquistado por hábito.
Segundo o Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, Ética é a "
ciência que tem por objeto o juízo de apreciação, enquanto este se
aplica à distinção entre o bem e o mal. Historicamente a palavra
Ética foi aplicada à Moral sob todas as suas formas, quer como
ciência, quer como arte de dirigir a conduta ". (Lalande, 1926: 348
- grifos nossos).
" A ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de
experiência humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral,
considerado porém na sua totalidade, diversidade e variedade. O que
nela se afirme sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve
valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de
fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu
caráter teórico e evita sua redução a uma disciplina normativa ou
pragmática. O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e
não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação em
situações concretas ". (Vázquez, 1969: 11).
Faz-se necessário uma rápida distinção entre os conceitos de ética e
moral, muitas vezes confundidos devido seu inter-relacionamento.
Pode-se dizer, em linhas gerais, que ética é um conjunto de normas
ou regras prescritas a fim de que a ação do indivíduo seja
considerada boa. Os problemas éticos se caracterizam pela sua
generalidade. Exemplificando: se um indivíduo se vê num dilema em
que pensa " devo dizer sempre a verdade ou há situações em que devo
mentir ? ", deverá resolver por si mesmo o problema levando em conta
o critério normativo a fim de que sua ação seja boa. " A ética
poderá dizer-lhe, em geral, o que é um comportamento pautado por
normas, ou em que consiste o fim - o bom - visado pelo comportamento
moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo concreto ou o
de todos. O problema do que fazer em cada situação concreta é um
problema prático-moral e não teórico-ético ". (Vásquez, 1969: 5-7).
Assim, afirma-se que " a ética é a teoria ou ciência do
comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja: é ciência de
uma forma específica de comportamento humano ". (Vásquez, 1969: 12).
Desta forma, pode-se inferir que ética e moral se relacionam
enquanto uma ciência específica e seu objeto, respectivamente. À
ética cabe a explicitação teórica dos fatos e à moral, a questão
prática, isto é, as ações propriamente ditas.
2- Da Ética do Caráter à Ética do Desejo:
Para o que nos propomos a realizar neste trabalho, destacaria o
conceito de virtude a fim de estabelecer uma linha de pensamento que
pretende contrapor a ética aristotélica à ética psicanalítica -
perpassando por Freud e Lacan.
Que é virtude ? Em linhas gerais, a nosso ver, virtude é uma
qualidade do homem temperante. Temperança enquanto a virtude do
meio-termo. Aristóteles nos coloca que " (...) a temperança é um
meio-termo em relação aos prazeres... ". Mais adiante adverte que às
pessoas intemperantes " (...) só interessa o gozo do objeto em si...
" e que " (...) nos apetites naturais poucos se enganam, e numa só
direção, a do excesso; e comer ou beber tudo que se tenha à mão até
a saciedade, é exceder a medida natural, pois que o apetite natural
se limita a preencher o que nos falta ". (Aristóteles: 95-96; grifos
nossos). Nas passagens acima grifadas, poder-se-ia pensar num
paralelo entre Aristóteles e Lacan...
De acordo com nossa proposta aqui, faz-se necessário pontuar algumas
outras citações textuais deste filósofo. " (...) o excesso em
relação aos prazeres é intemperança, e é culpável "; " (...) o homem
intemperante é assim chamado porque sofre mais do que deve quando
não obtém as coisas que lhe apetecem (sendo, pois, a sua própria dor
um efeito do prazer), e o homem temperante leva esse nome porque não
sofre com a ausência do que é agradável nem com o fato de abster-se.
O intemperante, pois, almeja todas as coisas agradáveis ou as que
mais o são, e é levado pelo seu apetite a escolhê-las a qualquer
custo; por isso sofre não apenas quando não as consegue, mas também
quando simplesmente anseia por elas...". (Aristóteles: 97 - grifos
nossos).
Com base nas formulações supra-citadas, poder-se-ia traçar um
paralelo entre a histeria freudiana (ou mesmo as neuroses em geral)
e a intemperança aristotélica ?
Enfim, Aristóteles nos apresenta a temperança enquanto virtude do
meio-termo, uma vez que o homem temperante é aquele que não se
coloca além ou aquém da medida Ou, em seus próprios termos: " (...)
homem temperante ... pessoa da espécie prescrita pela regra justa ".
(Aristóteles: 97).
Que regra justa ? A que estabelece como virtuoso aquele que se
contenta com aquilo que lhe cabe, não desejando mais ou menos do que
isso, senão pecaria por excesso ou falta. Assim, Aristóteles sempre
definirá a virtude de modo geral (isto é, relacionada à própria
temperança, à justiça, à coragem, etc.), como algo equidistante
entre dois vícios. A saber: excesso e falta.
Desta forma, " tanto para Aristóteles quanto para Platão (...), o
homem virtuoso será o bom cidadão ". (Chauí, 1984: 259-260).
Ainda no que se refere a esse assunto, qual seja, a posição de
Aristóteles a respeito das virtudes e o que pretendo relacionar com
a ética aristotélica (a ética do caráter), há que se considerar que,
segundo aquele pensador, a virtude pertence a uma das três espécies
de coisas que existem na alma: paixões, faculdades e disposições de
caráter. Por paixões, entendem-se os apetites tais como a cólera, o
medo, a inveja, o ódio, o desejo, a amizade, a compaixão, etc. que
são sentimentos em geral acompanhados de prazer ou dor. Por
faculdades, entendem-se as coisas pelas quais podemos nos dizer
capazes de sentir isso ou aquilo. E, finalmente, por disposições de
caráter, as coisas através das quais nossa posição referente às
paixões é boa ou má.
Justamente esse atributo de algo ser bom ou mau é que - a nosso ver
- se relaciona com as virtudes ou os vícios, respectivamente. Se,
por conseguinte, ninguém nos chama de bons ou maus, virtuosos ou
viciosos devido as nossas paixões ou pela faculdade / capacidade de
senti-las, só se pode pensar que as virtudes sejam disposições de
caráter, visto que " (...) pelas nossas virtudes e vícios somos
efetivamente louvados e censurados ". (Chauí, 1984: 266-267).
" (...) a virtude do homem também será a disposição de caráter que o
torna bom e que o faz desempenhar bem a sua função ". Tudo pode ser
considerado mais, menos ou uma quantidade igual, sendo que " (...) o
igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por meio-termo no
objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos, e que
é um só e o mesmo para todos os homens ".
(Chauí, 1984: 268-269 - grifos nossos). Aqui, nossa proposta quanto
à questão ética já começa a se prenunciar, uma vez que Aristóteles
propõe uma universalização de um bem comum e geral para todos os
homens (" o bom cidadão ") com a disposição de caráter para a
virtude - exceção para os viciosos.
Portanto, por ser a virtude uma disposição de caráter, a ética de
Aristóteles (que, a nosso ver, não pode prescindir do conceito de
virtude para ser estabelecida) é conhecida como a ética do caráter.
Ética esta, de caráter universalizante, já que determina, a priori,
o que pode e deve ser considerado bom e o que pode e deve ser
tratado como mau - para todos, indiferentemente. Trata-se, desta
forma, de uma ética julgadora, conservadora e moralista que limita e
restringe por um lado a liberdade dos homens, e por outro, procura
tratá-los como iguais, não levando em conta as singularidades e
particularidades de cada um.
É exatamente esse o ponto em que ocorre uma ruptura entre a
filosofia / proposta / concepção ética de Aristóteles e a ética da
Psicanálise. Não sei se seria possível denominar tal ruptura de
corte epistemológico, no sentido de que um outro saber - específico
da ciência psicanalítica - se sobrepôs ao saber filosófico daquela
época, com relação à questão da ética.
De qualquer forma, o fato é que se temos de um lado uma ética
generalizante, racional, que universaliza os princípios que deve
nortear os homens de bem, de outro lado, contrapõe-se uma ética cujo
objetivo é particularizar as diferenças pessoais entre os sujeitos,
não como pontos negativos ou perturbadores de uma ordem geral, mas
sim, com o intuito de enfatizar e respeitar a singularidade do
sujeito. Em Psicanálise, o homem ganha o estatuto de sujeito -
sujeito do inconsciente.
Poder-se-ia indagar sobre a utilização do termo racional como um dos
critérios que marcam a ética aristotélica. Segundo nosso entender,
Aristóteles pontua que a pessoa que possui um raciocínio lógico e
racional, não " cairia " no vício, por considerá-lo de natureza
inferior à virtude. Um homem lógico e racional, consideraria a
virtude como sendo o melhor para si e, assim, deliberaria em favor
dela. Mas, ressalve-se que o objeto de deliberação refere-se " (...)
àquilo sobre que pode deliberar um homem sensato ". (Aristóteles:
p.85 - grifos nossos).
Penso ser possível traçar um paralelo entre esse homem lógico,
racional e sensato de Aristóteles e o indivíduo considerado " normal
" em Freud, ou seja, aquele que faz as escolhas certas, adequadas e
pertinentes, isto é, esperadas pela sociedade (referência ao texto "
Mal-Estar na Civilização " - 1930) e pelo próprio Freud, em
determinadas ocasiões - como no Caso Dora, por exemplo.
Poder-se-ia denominar a ética de Freud de ética do prazer, na medida
em que o ser humano estaria em busca da felicidade tentando, de
todos os meios, evitar o desprazer. Diferentemente da proposta
aristotélica de uma felicidade universal e comum para todos os
homens de bem.
Num momento, pode-se pensar que a ética de Freud seria regida pelo
Princípio do Prazer - referência aos " Três Ensaios... ", 1905; em
outro, a ética perpassaria pelo nível dos conflitos externos (das
exigências sociais com relação à pessoa) e internos (da pessoa
consigo mesma) - referência ao " Mal-Estar... ", de 1930. " Freud
enfatiza a diferença entre dois tipos de renúncia: aquela que impõe
a civilização, e a que o sujeito se impõe. É a famosa Versagung ".
(Cottet, 1983: 123).
No entanto, Freud se preocupa com questões éticas, cita esse
assunto, mas não constrói uma ética da Psicanálise. Freud fala em um
sujeito que passa por conflitos inconscientes de natureza ética, no
sentido da decisão entre " o bem " imposto por outras pessoas (pai,
mãe, amigos, sociedade, o analista, etc.) e o que podemos denominar
de " meu bem " - o do próprio sujeito.
Mas, " (...) o analista não tem que tomar partido por um dos termos
do conflito inconsciente mais que por outro. Efetivamente, é a
estrutura mesma do sujeito do inconsciente, enquanto conceito da
divisão do sujeito, o que impõe essa suspensão, que é de ordem
ética: não suturar o conflito psíquico com um acosso
interpretativo... ". E mais adiante: " (...) o analista não tem que
escolher entre duas instâncias que governam o inconsciente do
sujeito, entre dois significantes que regem contraditoriamente o
inconsciente ". (Cottet, 1982: 124 - grifos nossos).
E isto tudo implica a questão da direção da cura: " A direção da
cura não dá ao analista o papel de mentor; este só tem um desejo: o
de ver o enfermo tomar as decisões por si próprio ". E acrescenta: "
Não se encontrará em Freud, uma ética do gozo (...). Freud não
anuncia nenhuma boa nova, nem a promessa de uma reconciliação entre
as instâncias dilaceradas do psiquismo. Contudo, a direção que impõe
à cura é prototípico do encontro do sujeito com seu desejo
inconsciente - e é com isso que o analista tem que lidar ".(Cottet,
1982: 125-126 - grifos nossos).
Embora, o analista possa se colocar na posição de objeto de desejo
do paciente. Isto quer dizer que o analista pode direcionar a cura
nesse, e unicamente, nesse sentido: o de se colocar como objeto de
desejo inconsciente do sujeito-paciente.
Serge Cottet, parafraseando Lacan nos diz: " Está por ser formulada
uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo, para
pôr em seu cume a questão do desejo do analista ". (Cottet, 1982:
122 - grifos nossos).
Tais questões referentes à ética e o desejo do analista, todavia,
serão melhor abordadas no capítulo 4.
3- Um Estudo Crítico do Caso Dora:
Em Outubro de 1900, Freud em carta a Fliess (carta 139), diz ter
começado a tratar há pouco tempo de uma nova paciente, " uma jovem
de dezoito anos ". (Freud, 1905: 15). A saber: Dora.
No prefácio do artigo que recebeu o título " Fragmento da análise de
um caso de histeria ", e que ficou conhecido como o Caso Dora, Freud
coloca que: " O trabalho levava originalmente o título de ' Sonhos e
Histeria ', que me parecia peculiarmente apto a mostrar como a
interpretação dos sonhos se entrelaça na história do tratamento e
como, com sua ajuda, podem preencher-se as amnésias e elucidarem-se
os sintomas ".
Pouco depois nos afirma o seguinte: " (...) o aprofundamento nos
problemas do sonho é um pré-requisito indispensável para a
compreensão dos processos psíquicos da histeria e das outras
psiconeuroses ". E mais adiante, alerta que " (...) este caso
clínico pressupõe o conhecimento da interpretação dos sonhos ".
(Freud, 1905: 22).
Em 25 de Janeiro de 1901 (carta 140) a Fliess, Freud diz que: " '
Sonhos e Histeria ' foi concluído ontem. É um fragmento da análise
de um caso de histeria em que as explicações se agrupam em torno de
dois sonhos ". (Freud, 1905: 15).
Ainda nas Notas Preliminares de Freud ao referido caso clínico e seu
título, o autor nos diz que por tratar-se apenas de um relato
referente aos três meses em que a paciente permaneceu em tratamento
- tendo abandonado o mesmo após esse tempo - como alguns enigmas não
haviam sido sequer abordados ou tinham sido esclarecidos de maneira
incompleta, Freud preferiu intitular o artigo com o nome " Fragmento
da análise de um caso de histeria ".
Quanto à escolha do nome Dora para designar sua paciente, Freud
apela para a questão ética no que tange ao sigilo e à preservação da
pessoa da paciente, no sentido de preservar a sua individualidade e
evitar que a mesma pudesse ser identificada por alguém, uma vez que
pretendia expor seu caso clínico em público. E ainda fez a ressalva
de que a mesma não saberia nada além do que já tivesse conhecimento
- adquirido durante o período de análise. (Freud, 1905: 23).
No cap. XII, intitulado " Determinismo, Crença no Acaso e
Superstição - Alguns pontos de vista ", no exemplo A (1) do artigo "
Sobre a psicopatologia da vida cotidiana " (1901), Freud esclarece o
que o levou a escolher esse pseudônimo para a paciente.
Neste exemplo, Freud nos coloca que há sempre um determinismo
psíquico atuando nas escolhas do sujeito, quer ele se dê conta
disso, quer não. E nos diz ainda que: " (...) não se pode fazer com
que um número ocorra por livre escolha, do mesmo modo que não se
pode fazê-lo com um nome". A partir daí, passa a dissertar um pouco
sobre a determinação psíquica que o levou a escolher o nome Dora
como pseudônimo de sua paciente. (Freud, 1901: 238 - 239).
Interessante notar que por quatro vezes, em escritos posteriores,
Freud situe seu tratamento de Dora no ano errado: 1899 ao invés de
1900 - note-se que 1899 foi o ano em que Freud redigiu " A
interpretação dos sonhos ". Observa-se esse fato duas vezes na 1a.
seção de sua " História do Movimento Psicanalítico " (1914) e
repete-se por mais duas vezes na nota de rodapé que ele acrescentou
ao caso clínico em 1923 (Freud, 1905: ps. 17, 24 e 25). Questiono
que causas inconscientes o teriam levado à repetição desse erro sem
dele se dar conta ?
O que motivou em mim fazer tal questionamento é o fato de tratar-se
de um caso de fracasso clínico de Freud, como ele mesmo admite em
seu posfácio. " (...) Antes de reconhecer a importância das
correntes homossexuais nos psiconeuróticos, fiquei muitas vezes
atrapalhado ou completamente desnorteado no tratamento de certos
casos ". E ainda: " Quanto mais vou me afastando no tempo do término
dessa análise, mais provável me parece que meu erro técnico tenha
consistido na seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de
comunicar à doente que a moção amorosa homossexual (ginecofílica)
pela Sra. K. era a mais forte das correntes inconscientes de sua
vida anímica. Eu deveria ter conjecturado que nenhuma outra pessoa
poderia ser a fonte principal dos conhecimentos de Dora sobre coisas
sexuais senão a Sra. K., a mesma pessoa que depois a acusara por
seus interesses nesses assuntos. Era realmente de chamar atenção que
ela soubesse de todas aquelas coisas indecentes e jamais quisesse
saber de onde as conhecia... Eu deveria ter tratado de decifrar esse
enigma e buscado o motivo desse estranho recalcamento ". (Freud,
1905: 114; nota de rodapé - grifos nossos).
Bem, após essa considerações e curiosidades iniciais sobre o caso,
procurarei limitar-me acerca do que o estudo desse caso pode
contribuir com relação às questões de ordem teórica, prática /
clínica e ética do analista. Portanto, partirei do princípio de que
o leitor possua um prévio conhecimento do Caso Dora.
De qualquer forma, farei uma breve exposição sobre o caso clínico, a
fim de que o leitor possa acompanhar minha linha de raciocínio de
forma mais articulada.
" Dora foi tratada durante três meses, no final de 1900. Seu caso
foi descrito em Janeiro de 1901 e publicado em 1905, na mesma época
em que os ' Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade '.
" Dora é levada ao consultório de Freud pelo pai, que havia sido
tratado anteriormente por ele de uma infecção sifilítica. Este chega
com a queixa de que não era entendido por sua mulher e a doença que
sofrera lhe deixara impotente. A demanda era de que Dora aceitasse
sua relação com a Sra. K, seu único consolo na vida.
" Dora, do seu lado, vinha sendo assediada pelo marido da Sra. K.,
aceitando o assédio docilmente até o momento em que ele lhe confessa
que sua mulher nada tem a ver com ele. Dora fala a seu pai das
investidas do Sr. K. que, quando interrogado pelo pai de Dora, não
apenas nega, mas volta a acusação contra a própria Dora, servindo-se
de informações prestadas por sua mulher, a Sra.K.
" Quando o pai vai pedir ajuda a Freud, Dora está no ponto em que se
recusa a ver novamente o casal K., além de ter deixado um bilhete,
ao alcance do pai, onde ameaçava suicidar-se, caso o pai não se
afastasse do casal ". (Seddon, 1998: 78-79).
Recortei esse resumo, por considerá-lo bastante concernente com as
idéias que pretendo expor.
Dora, que vinha aceitando os assédios do Sr. K., foge quando este
tenta beijá-la (cena do beijo - Dora com 14 anos) e esbofeteia o
mesmo ao fazer-lhe uma proposta amorosa (cena do lago - Dora com 16
anos). Em ambas as situações, o Sr. K. destitui a Sra. K. da posição
que ela ocupava na fantasia de Dora. Qual seja: posição de
valorização, de mulher objeto de desejo do homem, detentora dos
saberes e verdade que Dora espera sejam revelados.
As interpretações de Freud apontam o Sr. K. como causa do desejo de
Dora, por não ter ainda naquela época uma teoria da castração
feminina: o papel da mãe enquanto objeto primário para ambos os
sexos ainda não estava delineado. (Katz, 1992: 177-180).
Quando Dora interrompe o tratamento com Freud, está na realidade
dando uma bofetada simbólica nas interpretações de Freud (tal como
fez concretamente com o Sr. K. na cena do lago).
O desejo de Dora é um desejo que se encontra na vacilação, entre o
ser e o ter. Marcamos aqui a passagem de Freud a Lacan: do ter (eu
tenho - meninos x eu não tenho - meninas: da diferença anatômica
entre os sexos) ao ser (objeto de desejo do Outro).
Dora submete-se a duas posições: 1- cúmplice do relacionamento
extra-conjugal de seu pai e a Sra. K. e dos assédios do Sr. K. a ela
própria; 2- objeto de troca: Sra. K. e seu pai, Sr. K. e ela.
Poderíamos falar aqui, de um quadrilátero amoroso vs. a relação
triangular edípica considerada normal. Na cena do lago, o aparente
equilíbrio se quebra: " Minha mulher não é nada para mim " -
declaração do Sr. K. que empurra Dora para o consultório de Freud. "
Se a Sra. K. não é nada para o marido, isto impõe a Dora um ser -
ser desejada - que lhe provoca horror ao alojá-la na feminilidade e,
assim, impede-a de imaginarizar um ter ". (Katz, 1992: 181- grifos
nossos).
Um dos erros de Freud foi não ter percebido que o que une Dora ao
Sr. K. não é amor, mas identificação. Identificação masculina que
simboliza sua possível saída do Édipo. " Dora identificou-se com o
Sr. K., tal como vai-se identificando com o próprio Freud... E todas
as suas relações com os dois homens manifestam a agressividade em
que vemos a dimensão característica da alienação narcísica ".
(Lacan, 1951: 221).
O querer de Dora era de que alguém respondesse o que acontecia com
ela... Paradoxalmente, as respostas que encontra não a satisfazem,
deixam a desejar... Dora não encontra, procura. Procura o mistério
feminino através da identificação com o homem, a quem não deseja
como homem - deseja o seu desejo. (Katz, 1992: 181).
Neste ponto, creio que Lacan dá uma enorme contribuição a essa
questão ao referir-se especificamente à Dora e às mulheres em geral.
Vejamos: Lacan nos diz que Dora não tinha condições de aceitar a
homenagem do Sr. K., pois esta " (...) só poderia ser aceita por ela
como manifestação do desejo se ela se aceitasse a si mesma como
objeto do desejo, isto é, depois que houvesse esgotado o sentido
daquilo que procurava na Sra. K. Assim como em toda mulher, (...) o
problema de sua condição está, no fundo, em se aceitar como objeto
do desejo do homem, e é esse o mistério, para Dora, que motiva sua
idolatria pela Sra. K.... ". (Lacan, 1951: 221).
Assim, quando o Sr. K. lhe diz: " Eu te desejo; você é uma mulher "
e Freud lhe diz: " Você ama K.; você é uma mulher ", em ambos os
casos sua reação foram bofetadas que fizeram a história da
Psicanálise.
É precisamente neste ponto que Freud tropeça em seu próprio desejo -
o desejo de interpretar, e leva a análise a fragmentar-se. O
posicionamento de Freud no lugar de detentor da verdade é revelado
pela interpretação edípica " você ama K. ".
Freud " (...) faz coro com K. " (Katz, 1992: 181) e alimenta a
agressividade de Dora pelos homens. Como fica claro quando Dora
assim se expressa: " Já que todos os homens são detestáveis, prefiro
não me casar. Esta é minha vingança ". (Freud, 1905: 114).
Mas, afinal, qual desejo estava em jogo ? O de Dora ou o de Freud ?
Em outras palavras: o do paciente ou o do analista ?
4- A Questão ética e o desejo do analista:
Lacan, quando analisa o caso Dora em sua " Intervenção sobre a
transferência ", coloca que seu interesse a respeito desse caso,
consiste principalmente no fato de " (...) ele representar, na
experiência ainda nova da transferência, o primeiro em que Freud
reconheceu que o analista tem aí seu papel ". (Lacan, 1951:
216-217).
O desejo do analista, segundo Lacan, é a causa que desencadeia e
sustenta o movimento da transferência. O que ocorreu com Freud, com
relação ao caso Dora e, consequentemente, a seu fracasso, foi que
ele não conseguiu trabalhar / estabelecer a transferência devido a
questões pessoais. Cabe aqui citar Lacan, mais uma vez, quando ele
diz: " Que é pois, afinal, essa transferência cujo trabalho Freud
diz, em algum lugar, ser invisível por trás do progresso do
tratamento, e cujos efeitos, aliás, ' escapam à demonstração ' ? Não
nos será possível considerá-la aqui como uma entidade inteiramente
relativa à contratransferência, definida como a soma dos
preconceitos, das paixões, dos embaraços e até mesmo da informação
insuficiente do analista num dado momento do processo dialético ? ".
(Lacan, 1951: 224 - grifos nossos).
Assim, o desejo de Freud enquanto analista - que seria o vetor
desencadeante do processo transferencial, não operou positivamente,
pois ele mesmo estava inconsciente a respeito de suas próprias
correntes homossexuais e, desta forma, não conseguiu perceber isso
em Dora.
Podemos tentar esquematizar o fracasso da análise de Freud da
seguinte maneira:
1- não houve trabalho da transferência porque;
2- Freud não percebeu a bissexualidade de Dora (Freud trata Dora
como " normal " e só vem a considerá-la histérica quando, no
posfácio, diz perceber claramente as correntes homossexuais de Dora)
devido a;
3- pré-conceito com relação à própria bi / homossexualidade (Fliess)
o que;
4- o impediu de perceber isso em Dora a tempo.
Sem dúvida, pode-se afirmar que ocorre uma resistência de Freud com
relação a esse assunto, bem como uma insistência em tratá-la como "
normal ", isto é, como " fruto " (produto) de um Complexo de Édipo
positivo / normal. Dora, ao abandonar o tratamento três meses após
seu início, dá testemunho de que, embora haja algo de impermeável
resistência na própria estrutura da análise, a resistência que se
processa / produz na cura é a do analista.
Dora quer saber, chega à análise com a demanda de resposta para sua
desorientação. Freud lhe responde: " Você ama K. "- o que expõe de
um lado, seu preconceito (uma menina é feita para amar os meninos)
e, de outro, seu desejo de ver confirmada sua 1a. Teoria do Complexo
de Édipo, a saber: do Édipo Positivo. Quando, na realidade, o édipo
não é simples ou positivo apenas...
Outras questões que me passam pela cabeça dizem respeito à possível
identificação de Freud com Dora, uma vez que ambos acobertaram as
traições ou erros de seus " amados " - Dora, as traições da Sra. K.
e Freud, os erros de Fliess (particularmente o que se refere ao "
sonho de Irma "). E, também, o fato de que na época do caso Dora, o
conceito de cura não estava bem definido para Freud, ou melhor, este
tinha uma visão muito positiva acerca do assunto. Na realidade,
acredito que Freud só se definirá mais claramente a esse respeito em
seu artigo " Análise terminável e interminável ", de 1937.
No que concerne à questão ética do psicanalista, é preciso respeitar
a singularidade do sujeito. O que não aconteceu no caso Dora, em que
Freud quis impor sua visão acerca dos fatos, o que redundou em
fracasso clínico.
Isto nos remete à questão e contraposição do BEM aristotélico -
universal para todos, indiscriminadamente (com exceção para os
deuses que estão acima de tudo e para os brutos que não sabem o que
fazem) - e o MEU BEM da psicanálise, onde o que está em jogo é
aquilo que o paciente considera bom para ele. Independentemente, dos
critérios estabelecidos pela sociedade ou pelo que o próprio
analista considere ser " o bom ". Freud, no caso Dora, fica preso no
que ele considerava bom para ela. Assim, poder-se-ia pensar que,
nesse caso, Freud foi bastante aristotélico...
" (...) a cura não se resume em conduzir o paciente para a
'normalidade' que a sociedade prega ou para os ideais do analista ".
(Seddon: 1999 - programa do curso).
5- Conclusões:
O aparelho psíquico se constrói em torno de um 1o. momento, na
relação com o Outro. Momento este mítico, uma vez que ficará para
sempre perdido. O que permanece é a marca da situação que foi
perdida para sempre (recalque primário). Tudo que "se perdeu / foi
perdido" em Freud, Lacan chama - genericamente - de falta.
Daí advém o conceito de " das ding " (a coisa). Inanalisável, porque
sem registro (o psiquismo não registrou algo num determinado
momento). Monolítica (fechada em si mesma). Intraduzível - não pode
ser traduzida em palavras porque se perdeu (é muda). Irrecuperável,
portanto.
Trata-se de algo que marcou tanto que não fez registro. Tem a ver
com o encontro com o outro. Alguma coisa que se constrói a partir de
uma trama que gira em torno de algo que não há. Lacan chama de a
causa de desejo e busca e que nunca será alcançado.
Tentarei explicar rapidamente, a partir de um exemplo. No cap. 7 de
" A interpretação dos sonhos ", Freud coloca que existe um bebê de
um lado, e a mãe, de outro. Se por acaso o bebê começa a chorar -
devido a um aumento no nível de tensão (descarga motora
desorganizada - DMD, a nível vegetativo), a mãe procura dar um
sentido a essa descarga. Ou seja: o Outro, no caso a mãe, nomeia /
traduz o desejo da criança. Produz, assim, um encontro (a 1a.
experiência de satisfação). Não vai haver registro na criança, pois
ela não sabe o que é. Algo se perde (vazio, vácuo). Surge, então, o
1o. traço mnêmico da 1a. experiência de satisfação.
Da próxima vez que houver um aumento de tensão, ela (a criança)
chora - descarga motora desorganizada, porém um pouco mais
específica. Aqui, a criança já não chora necessariamente por estar
com fome, p. ex., mas por querer retornar àquela 1a. experiência de
gratificação, àquilo que se perdeu.
Isto é: a criança " alucina " ao ver o outro (da 1a. experiência de
satisfação) o que reacende o traço mnêmico primeiro. Então, ela
chora - DMD. Só que como aquela 1a. experiência de satisfação está
perdida, ocorre uma confusão entre realidade (experiência de fato) e
desejo - busca de algo perdido.
Na medida em que a criança cresce, começa a desenvolver o pensamento
e a associar uma coisa com a outra. A descarga passa a ser cada vez
mais organizada, porém a busca da 1a. experiência de satisfação
perdida continua.
Freud procura mostrar que esse é o mesmo processo que basicamente
acontece quando se sonha.
Freud coloca que o surgimento do aparelho psíquico humano é de
origem onírica. A partir daí divide esse aparelho em dois sistemas,
inicialmente: 1- o sistema inconsciente (dos processos primários),
aonde ocorrem as alucinações, as DMD, etc. Representa a origem
mítica do aparelho psíquico. Que está presente em sonhos, sintomas,
lapsos, atos falhos, enfim, nas formações do inconsciente; 2- o
sistema pré-consciente / consciente (dos processos secundários),
referente ao pensamento mais desenvolvido e organizado.
Entre esses sistemas existe uma barreira que funciona como censura,
que impede que determinados conteúdos do sistema inconsciente
tornem-se conscientes.
Os processos secundário (identidade de pensamento) e primário
(identidade de percepção), co-existem e " acontecem "
simultaneamente na mesma pessoa. Como tais processos são regidos ?
Freud fala da lógica que rege os processos.
A lógica do processo primário (ics.) inexiste. As representações se
sobrepõem; tudo é igual; tudo remete à 1a. experiência de satisfação
daquele 1o. encontro não registrado, mas que deixou sua marca... A
lógica do processo secundário (pré-cs. / cs.) é a da exclusão, da
diferença. Ou sim, ou não. Aqui há uma lógica que poderíamos
relacionar com a lógica aristotélica.
Assim, poder-se-ia pensar que o que conduz ao progresso é um " a
menos ", não um " a mais", no sentido de que a falta é a causa do
novo, daquilo que produz o novo, o bom, o positivo, enfim, o
progresso. É, portanto, a causa propulsora do desejo do ser humano,
que o faz estar em busca constante e permanente a fim de suprir
aquela carência inicial - a da 1a. experiência de satisfação
perdida.
Desta forma, o homem parte para a produção de algo, a partir do
nada, ou melhor, daquilo que lhe falta. E, assim, constitui-se como
sujeito desejante, sujeito a quem falta algo, a que -
inconscientemente - procurará durante sua vida, o impulsionando a
viver. Essa busca é interminável, uma vez que aquela carência é
insubstituível, insuprível.
Freud chegou a considerar essa falta como sendo tudo aquilo que
ficou " barrado ", recalcado no inconsciente. Tal falta, considerada
nesses termos, seria impossibilitadora da análise, isto é, atuaria
como impeditiva ao progresso, uma vez que paralisaria
(cristalizaria) o sujeito numa determinada posição.
Quanto a isso, Lacan vai propor o " atravessamento da fantasia ",
através não do preenchimento da dita falta (impossível por si mesma
de ser preenchida), mas a partir do vislumbre de enxergar as coisas
sobre um prisma diferente, novo. Ou seja: a falta tem, assim, o
aspecto de proporcionar ao sujeito uma superação de si próprio.
Trata-se de algo interno, de mudança interna com relação à forma de
lidar e defrontar-se com o vazio.
Lembro-me aqui do exemplo do vaso de barro de Heidegger. Por fora, "
Que belo ! "; por dentro, vazio (o vácuo). Esse é, contudo, o ponto
interessante da questão, que nos serve como fundamento para traçar
um paralelo. O vazio, o vácuo como produtor de coisas novas. Esse
seria o atravessamento da fantasia. Tal atravessamento se dá a
partir da conscientização, ou melhor, da defrontação com o vazio,
com a falta constitutiva do sujeito. E é isso que fará com que o
sujeito saia da posição " à mercê de ... " em que chegou na análise
(a responsável, a culpada, a vítima, o coitadinho, o " bode
expiatório ", ...).
Para isso é preciso que o analista respeite a singularidade do
analisando, a fim de que possa acompanhá-lo em sua travessia única,
particular.
Por tudo o que foi colocado até agora, ressaltamos a importância da
análise pessoal (vimos que Freud não havia trabalhado determinadas
questões em sua auto-análise *, o que prejudicou o curso do
andamento positivo da análise do Caso Dora em específico - mas que é
algo que pode vir a prejudicar qualquer análise - referimo-nos aqui
aos " pontos-cegos " do analista); bem como a importância de
ficarmos atentos à questão da teoria que não deve ser utilizada como
dogma, mas sim como guia, auxiliando o processo analítico e não
prejudicando o mesmo.
* vide epígrafe.
No caso Dora, Freud ateve-se à questão teórica pelo menos em dois
pontos: o do mecanismo e dinâmica dos processos histéricos (na
formulação de sua teoria sobre a histeria) e na teoria do complexo
de édipo positivo - devido a suas próprias questões pessoais.
Assim, é preciso que fiquemos atentos, pois essas questões pessoais
interferem no processo analítico. Seja negativamente, se não
percebidas e trabalhadas pelo analista a tempo; seja de forma
positiva, uma vez que se considerarmos que " (...) a psicanálise é
uma experiência dialética... " (Lacan, 1951: 215), o que ocorre com
o analista também faz parte do processo e é importante para que o
mesmo se dê.
Freud nos deixou um legado, que poderíamos chamar do fracasso ao
acerto.
O caso Dora é hoje referencial obrigatório para a clínica da
histeria e clínica em geral, justamente por sua análise fragmentária
ter sido um fracasso que Freud, humilde e ousadamente, se propôs a
publicar. Fracasso este que põe em jogo a concepção freudiana do
lugar do analista. Ao tornar público o fracasso, Freud nos indica o
caminho a seguir: a análise. Se prestarmos atenção no modo de
condução de Freud com relação ao caso Dora, será possível perceber
que ele, a nosso ver, não analisa, simplesmente sintetiza. Em outras
palavras: Freud " pega " o material trazido por Dora e, rapidamente,
lhe devolve em forma de interpretação. Isto é: faz uma síntese, não
uma análise.
Ou seja: fracasso fecundo. Produção a partir de erros e fracassos. O
analista, na nossa concepção, tem que estar preparado para se
defrontar e aceitar suas falhas na clínica. E a partir delas
elaborar, construindo outros meios e caminhos que ajudem a impedir
que elas aconteçam ou se repitam.
Finalizando este trabalho, gostaria de deixar uma citação que
considero bastante pertinente sobre os assuntos aqui tratados: " Na
medida em que quer saber e, portanto, quer curar, o mestre é
destituído de sua posição de domínio e reduzido a um mero ser
desejante ", tal qual o paciente. (Katz, 1992: 183).
Que não incorramos nesses erros... Ou que tenhamos a humildade e
ética de reconhecê-los como naturais em qualquer ser humano. Afinal,
antes de mais nada, somos pessoas como outras quaisquer...
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